GBAS: Pouso de Precisão
DECEA dá início ao processo de implementação de equipamento que permite o pouso de precisão por satélites.
O VOR de Caxias ainda não está visual, mas o piloto sabe; o Galeão está próximo. A chuva é forte, o tempo muito fechado, a aeronave sacode com a turbulência. Disparam-se bips da cabine, solicitando aos passageiros que mantenham seus cintos afivelados.
O piloto, que já iniciara o procedimento de descida, não vê nada à sua frente senão um punhado de nuvens escuras vez por outra clareadas pelos filetes de raio que angustiam até mesmo os tripulantes mais calejados.
A orientação da Torre é a de que a aeronave mantenha seu curso até a interceptação dos sinais de um equipamento que o auxiliará a encontrar o eixo e a rampa convenientes para o pouso na cabeceira 15 do aeroporto.
O piloto mantém a proa e alcança os sinais do dispositivo que passa então a orientá-lo de maneira análoga a um videogame no monitor à sua frente. Ajusta a radial – conforme a orientação dos grafismos do monitor – e, completamente "às cegas", empurra o manche rumo a uma rampa imaginária de um aeroporto inexistente a seus olhos. Dessa vez, não vai dar praia no Rio de Janeiro; mas os passageiros podem estar certos: o avião pousará em meio às nuvens cor-de-chumbo com segurança, quase como sob "céu de Brigadeiro".
A cena é mais comum do que parece. Não só no Galeão, mas em muitos aeroportos do País e do resto do mundo. O equipamento em questão, o ILS, é o Sistema de Pouso por Instrumentos. Um dispositivo capaz de "traçar" o percurso ideal da aeronave para um pouso de precisão, ao menos até uma altitude de decisão (DA) já próxima ao solo.
Em síntese, o ILS consegue guiar o piloto até essa altitude pré-determinada – que no caso brasileiro varia de 30 a 60 metros conforme sua categoria – quando o piloto decide, segundo as condições visuais, se poderá de fato consumar ou não o pouso.
Largamente difundido no mundo inteiro – desde a década de 40 quando foi adotado pela autoridade provedora dos serviços de navegação aérea norte-americana – o ILS representou uma verdadeira revolução para o transporte aéreo e é, sobretudo hoje, imprescindível diante do volumoso fluxo de tráfego aéreo contemporâneo.
Mas o sistema que por décadas vem fazendo as vezes dos olhos dos pilotos no pouso começa a ter de dividir atenções com um concorrente de peso. Um candidato ousado, que não bastasse oferecer mais precisão e abrangência para uma tarefa similar, proporciona também custo significativamente inferior.
Apesar de ainda não adotado oficialmente – com procedimentos homologados – o GBAS, acrônimo inglês para Ground-Based Augmentation System (Sistema de Aumentação Baseado em Solo) já opera em importantes aeroportos do exterior em fase de experiência e oferece algumas vantagens expressivas que justificam seu destaque. A primeira é a abrangência: um sistema GBAS não atua somente numa cabeceira da pista – tal qual o ILS -, mas também em todas as demais que estiverem no raio de alcance do instrumento. Ou seja, o aeródromo inteiro e, em alguns casos, até mesmo os adjacentes. Teoricamente, uma única estação é capaz de lidar com até 26 aproximações de precisão!
Do mesmo modo, as aeronaves com o GBAS não dependem exclusivamente da famosa rampa imaginária do ILS; elas estão aptas a executar aproximações de precisão em curvas e, mesmo, quando a configuração das pistas permite, em paralelo – o que representa um aumento significativo para as capacidades dos aeroportos.
O sistema também tem por pressuposto, no futuro, apoiar, além do pouso, a aproximação, a decolagem e, inclusive, os movimentos das aeronaves na superfície; ou seja, uma estrutura completa de apoio à navegação aérea em toda a circunvizinhança do aeródromo.
Não bastassem essas características, as conhecidas suscetibilidades do ILS a interferências de toda ordem, como a das ondas VHF, e toda a complexidade que envolve sua instalação – necessidade de grandes áreas livres que muitas vezes dão margem à remoção de habitações e edificações -, não oferecem obstáculo algum ao novo sistema. Para ser alojado, ele requer apenas uma pequena área para fixação de alguns dispositivos na pista. Mas, afinal, o que torna possível ao GBAS todas essas vantagens? O sistema GBAS conseguirá na prática alcançar o êxito ora prometido pela teoria?
Novos conceitos, novos paradigmas
Antes de tudo, é preciso compreender o GBAS sob uma nova ótica. Afinado ao moderno conceito CNS/ATM, que compreende, de modo geral, a transição do sistema convencional de navegação aérea para um novo paradigma na execução – e mesmo gestão – da atividade, o incipiente sistema de pouso de precisão não segue a ordenação tradicional dos auxílios à navegação aérea habituais.
No CNS/ATM, as rotas das aeronaves não são mais delimitadas unicamente por auxílios de solo que se comunicam através de ondas rádio, mas também por satélites. Isso porque os conceitos aplicados aos novos sistemas de navegação são fundamentados no GNSS – em português: Sistema Global de Navegação por Satélites. O GNSS é o padrão estabelecido pela Organização de Aviação Civil Internacional (OACI) para estes novos sistemas de navegação que, a partir de então, pautam-se em constelações de satélites dedicados.
Esse posicionamento gerado pelos satélites às aeronaves em voo, porém, não é tão simples quanto aquele apurado pelos aparelhos GPS largamente utilizados no dia-a-dia. Há uma série de fenômenos naturais inerentes às altitudes que podem provocar alterações nos sinais, especialmente nas aproximações de precisão. Essas alterações precisam ser então corrigidas ("aumentadas") pelos chamados sistemas de aumentação e é justamente aí que entra o GBAS. O sistema vem conseguindo, com êxito, corrigir os sinais de satélite para aproximação das aeronaves de forma análoga à aproximação do ILS na categoria 1 e, tem por intuito, posteriormente, estender suas capacidades às categorias 2 e 3.
De um modo geral, o Sistema GBAS consiste de:
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quatro receptores instalados próximo à pista para receber os dados de navegação GPS;
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um processador, em solo, que executa as correções do GPS e provê as informações de apoio aos procedimentos de navegação;
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uma unidade de transmissão – também instalada próxima à pista que transfere essas informações à cabine das aeronaves, via VHF, por meio de um display similar ao utilizado para o ILS.
Desse modo, o GBAS ajusta os posicionamentos gerados pelos satélites e provê guias verticais e horizontais aos pilotos para as aproximações e – no futuro – para o apoio às decolagens guiadas e às operações de outra ordem na área terminal.
As peculiaridades de uma ionosfera tropical
Já há algum tempo, o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA) – órgão responsável pela gestão das atividades relacionadas ao controle do espaço aéreo brasileiro – vem monitorando os resultados e êxitos do sistema mundo afora, bem como executando testes num protótipo da FAA (Federal Aviation Administration – organização provedora dos serviços de navegação aérea norte-americana) no Galeão. Este ano o DECEA adquiriu uma Estação GBAS certificada para operações nos Estados Unidos, de forma a avaliar seu desempenho nas condições equatoriais.
O Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, foi o escolhido para abrigar o projeto piloto do GBAS brasileiro. Em julho de 2010, técnicos de empresas parceiras da organização na iniciativa uniram-se à Comissão de Implantação do Sistema de Controle do Espaço Aéreo (CISCEA), instituição subordinada ao DECEA, para dar início ao processo de instalação do sistema. A Estação SLS-4000 Smart Path GBAS da empresa norte-americana Honeywell foi recentemente certificada pela FAA e já opera em alguns aeroportos da Europa, dos Estados Unidos e do Sul da Austrália.
Para o Tenente-Coronel-Aviador Ricardo Elias Cosendey, Chefe da Divisão de Gerenciamento de Navegação Aérea – do Subdepartamento de Operações do DECEA – há, ainda, um grande desafio pela frente. Isso porque a ionosfera terrestre apresenta comportamentos distintos em diferentes latitudes do planeta e, no caso do GBAS, a região a ser instalado o sistema termina por influenciar significativamente sua operação. No caso brasileiro, o desafio será lidar com as particularidades da ionosfera de baixa latitude do País, ainda não experienciada pelo sistema, uma vez que o mesmo, até então, só fora implementado em países de média latitude.
"Na nossa região, um dos principais distúrbios da ionosfera – conhecido como Irregularidade Equatorial ou Bolhas de Plasma – caracteriza-se pelo deslocamento das chamadas `bolhas' de baixa ionização; elas podem provocar atrasos no sinal do satélite, gerando erro no cálculo da posição GPS", explica.
"O Brasil, como pioneiro na implementação deste tipo de tecnologia nas regiões geoequatoriais, tem o desafio de investigar o impacto dos fenômenos ionosféricos da área nos sinais de navegação transmitidos pelo GBAS. Para tanto, a estação será submetida a testes de desempenho durante o ápice do ciclo de atividade solar – que ocorrerá nos próximos anos – de modo a garantir a segurança de sua utilização", afirma o oficial.
Pelo cronograma, já no primeiro semestre de 2011, o aeroporto iniciará os testes da primeira Estação GBAS da América Latina. A implementação, porém, será gradual e dependerá dos testes de desempenho a serem realizados no Galeão num período de um a dois anos. Do mesmo modo, ela estará sujeitas às análises que levam em conta as particularidades dos aeroportos nacionais, alocados em latitudes diversas.
Ainda segundo o Tenente-Coronel Cosendey, "as pesquisas e os testes realizados com os sistemas de aumentação, inclusive, têm gerado uma importante economia para o País, evitando o investimento em custosos sistemas estrangeiros que provaram ter uma relação desfavorável de custo/benefício no Brasil. Aliado a isso, as pesquisas da ionosfera proporcionarão um conhecimento de fundamental importância nesta fase de transição para sistemas satelitais".
De qualquer modo, o Brasil e o mundo caminham rumo à transição para um sistema global de navegação por satélites e baseado no desempenho de modernos aviônicos a bordo das aeronaves. Nesse contexto, GBAS é hoje o sistema capaz de apoiar aproximações de precisão por satélite com a eficácia requerida. Uma alternativa já consagrada por gestores da atividade em outros importantes aeroportos do mundo que também optaram pelo sistema, como o Aeroporto de Bremen, na Alemanha; de Málaga, na Espanha; de Memphis e Newark, nos Estados Unidos e o Aeroporto Internacional de Sydney, na capital australiana.
Não é para menos, ao requerer um só sistema para servir as cabeceiras de um aeroporto inteiro, a alternativa viabiliza uma economia de custos substancial. Somado às significativas economias nos custos de manutenção, às funcionalidades e aos benefícios operacionais, o GBAS vem conseguindo ocupar um espaço onde até então o ILS reinava absoluto. E encontra hoje, na carona da adoção das estratégias de gestão do tráfego aéreo provenientes do conceito CNS/ATM, respaldo expressivo para uma possível consolidação em médio e longo prazo.
Por Daniel Marinho
Foto: Luiz Perez
* Reportagem originalmente publicada na edição nº 44 da Revista Aeroespaço.